terça-feira, 13 de novembro de 2012

Lúcida embriaguez da palavra

Entrevista de Fernando Portela para o Jornal do Commercio, de Recife.
Sobre o livro Memórias Embriagadas.
(09.03.2009)
  

Por Marcelo Pereira




Como era sua rotina de trabalho na escrita dos contos? Já se deu por satisfeito em seu projeto literário ou continua no mesmo ritmo? Que unidade você buscou na triologia?
Jamais tinha feito isso antes: obrigar-me a escrever de qualquer jeito. Mas precisava acabar com o mito, dentro de mim mesmo, do “melhor momento” ou “inspiração”. Escrever qualquer coisa é só trabalho. Não busquei uma unidade porque sou dispersivo, múltiplo e levemente esquizofrênico. Se há unidade, é na linguagem. Como diz Humberto Werneck que apresentou um dos meus livros, eu escrevo “fácil”, mas só na forma.
Vou falar da vida real e da vida sonhada.
Hoje, passo o dia editando livros de três coleções. Eventualmente, à noite, escrevo alguma coisa, na verdade reescrevo, pois estou preparando um livro "novo", a partir da compilação de dois livros antigos, de contos. Passo cerca de dez horas diante do computador.
A vida sonhada é contratar um editor profissional, passar a execução pra ele e escrever ficção durante todo esse tempo, ou um pouco menos, para conseguir ler alguma coisa.
Mas não estou me queixando, não me queixo de nada.
O projeto da trilogia acabou. Foram 150 histórias curtas.  


Algumas dessas histórias foram escritas embriagadas? Ou são frutos de uma lucidez alucinante? 
Dentro das redações de jornal, onde trabalhei boa parte da vida, sempre me fascinaram os caras que conseguiam escrever bêbados ou “tocados”. Porque eu não consigo. Nem com um cálice de vinho. A lucidez me é fundamental para entrar no meu porre particular. Descobri, há algum tempo, que escrever, pra mim, é o mesmo que meditar. Entro em alfa.  

Você faz anotações das histórias antes de começar a escrevê-las?
Nunca planejei nada. Sigo o pensamento sufi: “Planejar é repetir o que você fez no passado, é uma idéia morta. A vida é como um pássaro no céu: voa, não deixa vestígios, e o céu continua tão vazio como antes. Seja como um pássaro, mova-se de acordo com o que o momento lhe solicitar, com o que sua inteligência disser naquele instante”.
O que acontece é que, às vezes, a idéia genérica de uma história vem junto com seu desenvolvimento, um certo roteiro. Mas não me lembro de ter seguido, jamais, a proposta inicialmente pensada. Mudo tudo.

De onde vêm tantos temas?
Da dispersão pessoal, da vontade de entrar em todo lugar e em todas as cabeças, de uma curiosidade mórbida, da função de repórter que sempre exerci. 

Como você define seu estilo de leitura? É um leitor compulsivo? O que mais gosta de ler? Reportagens jornalísticas, ficção, ensaios?
Esta é sempre a pergunta mais difícil. Porque leio tudo: genial, ruim, mais ou menos. Leio os reconhecidos, esquecidos e odiados. Um dia desses, um repórter de rádio me perguntou, ao vivo, qual o livro mais importante da minha vida. Eu respondi, com honestidade, “A Doutrina Secreta” (de Helena  Blavatsky) e foi um grande constrangimento porque o rapaz não o conhecia. Não sei se ele tinha obrigação ou não disso, mas nunca deixarei de dizer o que penso – o que, hoje, é o cúmulo do politicamente incorreto. O antimarketing. Mas o que me provoca orgasmos literários é poesia. De qualquer tempo e escola.

Como conciliar a literatura com os outros afazeres profissionais?
Usar os afazeres como matéria prima para histórias. Sempre fiz isso.
A violência está sempre pronta para explodir em seus contos. Isto é uma estratégia do narrador ou reflete a violência própria do país?
É um reflexo deste pobre país, violento sob todas as formas, das quais a social é a mais complexa. Somos uma imensa máfia. Temos de resolver isso com urgência.

Você não consegue segurar os impulsos dos seus personagens, que no destempero abrem o verbo e chamam palavrão. Isto é uma forma de catarse pessoal?
Acredito que seja, ainda, um reflexo da violência do meio ambiente. Tenho contos inteiros sem um único palavrão, quando retrato o “outro lado” do Brasil, o das pessoas comuns, ingênuas, incorruptíveis. O país em que gostaria de viver.  

Já pensou em se aventurar a algum projeto de mais longo fôlego, como um romance? 
Já escrevi novelas juvenis. Romance, acho que vou começar a escrever um. Mas tenho medo de sucumbir à minha própria dispersão.

Qual o seu projeto literário atual?
Estou juntando histórias dos meus primeiros livros, “Leonora Premiada” e “Querido Senhor Assassino”, ambos da década de 70, para fazer um volume só. Já tenho até o título (de uma história passada no Recife profundo): “O Rock dos Miseráveis”. 

Suas histórias não possuem nenhuma localização geográfica específica, precisa. Há apenas indicações: campo, cidade, subúrbio etc. Por quê?
Porque eu sou assim, impreciso e inespecífico. Mas tenho histórias passadas no sul do Brasil, por exemplo, que dá todas as dicas para o leitor. Numa delas (“Aleluia”, do livro “Allegro”), a personagem chama-se Don Antônio – assim mesmo, com “n” - e cria ovelhas de lã.

O fenômeno sobrenatural (místico e, às vezes, de malassombro e etês) está presente em alguns contos, às vezes se constituindo num realismo fantástico ou maravilhoso. Como você encara o fenômeno sobrenatural e a espiritualidade?
Acredito piamente que a brincadeira não acaba aqui, nesta vida. Assim, há um extenso (e maravilhoso) campo intermediário entre as realidades física e incorpórea, ou espiritual. Escrevo muito sobre isso.

Você coloca nas palavras de um personagem uma crítica às revistas semanais e ao governo. A literatura é uma forma de crítica social e desabafo?
Sou um “filho” da ditadura militar que deixou o Recife em 1965 pela dificuldade de conviver com as travas culturais. Continuo com as mesmas aspirações de estudante: justiça social, democracia e ética. Profundamente, tudo o que aconteceu de progresso social dos anos 60 pra cá é paliativo. Óbulo, ajuda, socorro, mãozinha, pra não dizer esmola. A literatura ajuda na medida em que mostra espontaneamente uma realidade tão dolorosa que nós todos tendemos a racionalizar. Não acredite jamais em quem lhe diga: “Avançamos muito”. Porque continuamos na mais absoluta e pastosa merda social. 

Não há muita desesperança em seus contos? 
Há, sem dúvida. Mas quero ser desmentido, desautorizado, negado. Espero que isso aconteça, um dia.

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