quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Embriaguez e Beethoven, temas de ficções

Por Renato Pompeu , no Jornal Diário do Comércio
Dois lançamentos de ficção, o livro de contos Memórias embriagadas, do pernambucano Fernando Portela, editado pela Noovha América, e o romance A décima sinfonia, do espanhol que se apresenta sob o pseudônimo Joseph Gelinek, publicado pela Primavera Editorial, proporcionam bons momentos de entretenimento, são informativas documentações sociais, respectivamente, sobre o Brasil de hoje e sobre o meio musical internacional e, no caso do romance, há um didatismo bastante elucidativo sobre a música em geral e a obra de Beethoven em particular.
O bem-sucedido jornalista Fernando Portela, que foi diretor do Jornal da Tarde e diretor de Comunicação da Fiat, completa com esses novos contos uma trilogia iniciada com Allegro, em 2003, e continuada com O homem dentro de um cão, de 2007.
Ele surpreende pela imaginosa fabulação - ao contrário da maioria dos ficcionistas oriundos do jornalismo, ele não se baseia em fatos reais que acompanhou, ou em episódios de sua vida pessoal ou de seus conhecidos. Ao contrário, o realismo de seus contos é o realismo dos sonhos, o realismo, literalmente, das visões afetadas pela embriaguez.
Seus personagens são normalmente desalentados, vencidos da vida, destituídos: o artista popular que centenas de vezes levou o grande teatro a circos e que, quando morreu, não foi considerado digno de ter seu necrológio publicado nos jornais, o avô do neto morto por atropelamento que sai atirando contra todos os carros que vê pela frente, a louca que levava pedradas na rua, a menininha que imagina situações eróticas com quem não deve.
O clima é de sonho, às vezes de pesadelo, e as tramas prendem o leitor, além do que o desenlace é sempre surpreendente. Tramas envolventes e desenlace surpreendente também são o forte do romance do musicólogo de elite e fã da cultura popular Gelinek, romance que gira sobre a redescoberta da integralidade da partitura original da décima sinfonia de Beethoven, da qual, na realidade histórica, só nos restaram fragmentos que não chegam a compor um trecho completo. O enredo envolve uma investigação policial sobre um assassínio e uma pesquisa sobre a localização do suposto manuscrito da sinfonia.
A ação se passa na Espanha dos anos 1980 e na atualidade, na Viena contemporânea e do século 19, na Córsega, na França, na Nova Zelândia - um signo da globalização. Os leitores são informados sobre aspectos profundos da criação musical e da vida dos grandes compositores, e veem episódios das tramas serem comparados a cenas de filmes famosos e até mesmo de anúncios de televisão, ou de programas de humor.
O autor tem um conhecimento enciclopédico sobre tudo isso e, principalmente, consegue transmitir essas noções de uma forma bem compreensível e bastante prazerosa.
O leitor, além de beneficiado com uma trama policial que envolve inspetores, peritos, médicos-legistas, juízes e até príncipes, também tem vislumbres sobre as vidas de luxo de arquimilionários, com suas obras de grande arte cuidadosamente colecionadas, e sobre o passado e o presente da famosa escola de equitação espanhola da Viena sempre com ares imperiais. Há ainda lições sobre criptografia em geral, criptografia musical, criptografia maçônica, grafopsicologia, em que, a par de ficar envolvido em densos mistérios que pouco a pouco se esclarecem (ou não), o leitor também se vê iniciado em diversas formas de anotar segredos de maneira que não sejam descobertos. Suspeitos se tornam investigadores, investigadores se tornam suspeitos, até o desenlace que junta, assustadoramente, todas as peças dos vários quebra-cabeças ardilosamente montados pelo autor.
Em suma, enquanto Portela surpreende pela riqueza de sua imaginação, de sua capacidade de fabular, de literalmente criar fábulas em que os arquétipos são seres humanos e não animais, Gelinek surpreende pela capacidade de produzir - mais do que criar, pois ele segue todas as regras da produção de um bestseller - um romance tão cheio de ensinamentos e de desafios ao raciocínio do leitor.
*Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo Como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário